Conheci Michella Marys, a Mima, em 2014, quando organizava o movimento #NãoMereçoSerEstuprada contra a culpabilização das vítimas de estupro. Mima foi uma das primeiras mulheres de Brasília que, sem nem me conhecer, estendeu a mão e perguntou: “Como posso ajudar? Essa causa também me toca”.
Quando tomamos um café em sua casa enorme e arejada em Brasília, cheia de móveis de grife e decoração de bom gosto, acreditei estar no lar de uma família feliz e realizada. Mal imaginava que Mima já enfrentava uma grande batalha contra o machismo na intimidade de sua cama. Hoje, ela conta: o então marido, Roberto Caldas, ex-juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a agredia de formas diversas (inclusive sexualmente) e assediava e estuprava as funcionárias da residência.
E Mima aturava tudo em silêncio, pelo “bem dos filhos” e por medo de desafiar um homem tão poderoso e conhecido por todos como um grande benfeitor dos Direitos Humanos. “Quem iria acreditar em você?” — ele teria dito para ela, a desafiando, em mais de uma ocasião.
Quatro anos se passaram do dia em que conheci Mima, mas agora ela gritou: “Chega”. E denunciou o homem à Justiça e à imprensa. Ela até fala como alguém mais forte, ganhou outra voz. A imprensa já muito relatou sobre o caso. A situação enoja todos nós pela quantidade de testemunhas, evidências e hipocrisias. A mim restou perguntar a ela: “Mima, o que mudou? Quero dizer, muitas mulheres receiam denunciar parceiros com muito menos recursos, muito menos conhecimento jurídico, muito menos amigos poderosos. De onde veio sua coragem?”
E ela me respondeu: “Descobri que outras mulheres sofriam junto — e eu não estava sozinha”. Replico sua fala a seguir, na esperança de servir de inspiração para outras mulheres vivendo situações de abuso como a dela:
“Sempre fui uma ativista do feminismo, dava até palestras pela Marcha das Vadias. Pra mim, era um paradoxo muito grande falar sobre empoderamento feminino e passar isso dentro de casa.
Primeiro, superei essa vergonha e contei a uma amiga — ela tirou fotos das agressões e me levou muitas vezes ao hospital — e à minha psicóloga. Elas me fizeram sentir amparada. Comecei a me fortalecer até ter coragem de denunciá-lo.
Logo antes, havia descoberto que ele tinha se envolvido com duas ex-empregadas da casa. Uma delas, a Gisele, afirma ter cedido (ao assédio) por medo de perder o emprego. Quando ela deixou de retribuir às investidas, ele (Roberto) começou a implicar com ela. Outra, Malvina, chegou a tentar o suicídio. Fui eu quem socorreu a Malvina e a levei ao hospital psiquiátrico, mas, na época, ela não quis me contar o motivo.
Quando finalmente tomei conhecimento desses assédios, pensei: ‘Não sou só eu, preciso dizer alguma coisa’. Houve dano à classe das trabalhadoras domésticas, a qual ele tanto afirmava defender. Ele participava da Comissão Nacional para a Erradicação ao Trabalho Escravo, mas em casa praticava o abuso escravocrata mais antigo: o abuso sexual dos subordinados.
Minha psicóloga me ajudou a entender que eu precisava quebrar este padrão. Agora estou num processo de resgate de alma. E se ganhei este espaço público para falar, quero ser uma voz para todas as mulheres sem o mesmo espaço. Quero inspirar outras a romperem esse silêncio. Porém, não é fácil: a sociedade julga e tenta desqualificar a mulher com essa coragem.
O meu conselho para quem vive realidade semelhante é denunciar hoje, não esperar. Em situação de dependência emocional ou financeira, a gente acredita na mudança do parceiro. Mas a tendência é o oposto, é piorar com o tempo. Muitas, como eu, podem achar que estão protegendo os filhos. Mas isso não é verdade: faz muito mais mal para as crianças presenciar essa situação do que ter pais separados.
Busquem movimentos de mulheres que podem te dar apoio e denunciem. E às mulheres observando de fora: não se calem. A omissão está beneficiando os abusadores.”
Metrópole